A
igreja lá do bairro eu sempre via quando, no portão de casa, levantava os
olhos, à noroeste. Suas duas torres roxas subindo até o céu, não muito perto, mas
parecia não ter fim. Ainda mais agigantada no tocar da ave-maria ao meio-dia, eu
ouvia lá de casa. Morava perto da igreja, e eu ouvia! Coisa de Deus mesmo. Do
portão, estático, em pés levemente levantados, via a igreja projetar-se. De lá,
do mesmo lugar, na mesma posição, vi quando ergueram as torres. Antes, no
horizonte das vistas, não tinha torre nenhuma não. Só o céu, límpido, azul,
cinza, a depender do humor do dia, cheio de nuvens escuras, lá no lugar onde
fizeram as torres da igreja, que é o lugar que meu pai fala até hoje de onde
vem a nossa chuva, nossa chuva é aquela que vem daquele lado.
Do
portão de casa, eu construí as torres junto aos pedreiros. Enxergava-os subindo
nos andaimes, assentando os tijolinhos, passando o cimento, preparando o reboco
final, tinta roxa. Sentia como se estivesse lá, colocando cada peça. Quando o
padre resolveu pintar de roxo achei estranho, muita gente também, calada ou
não, isso nem é cor de igreja. Muita gente pensou assim, mas tudo bem, é coisa
diferente, deve ser bom. O padre que teve a ideia.
Do
portão da minha casa, eu vi: as torres se ergueram, incompletas. Sim, porque a
ponta da torre lá em cima nunca estava pronta. Faltava uma pintura, um
acabamento, pra igualar a torre da igreja São Francisco. No lugar, placas de metal
acinzentadas que de quando em quando refletiam o sol. Enfeiavam as vistas. Me
frustrei com o cimo da torre da igreja.
Um
dia, sonhei que eles colocavam vitrais bonitos e coloridos na igreja em
reforma, havia muito cimento espalhado por lá, não pensei que a parte mais alta
da torre jamais terminasse, pronta. Que esquisito, tem gente que nem percebe,
que acha normal, é assim mesmo, o padre que teve a ideia. Sei não. Mas seu eu
fosse o padre fazia diferente. Meu pai também diz isso até hoje, ele diz que a
igreja cresceu pra cima, mas não colocaram banco para o povo sentar, por isso o
povo continua em pé nas missas, sem lugar na igreja. No começo eu achava que
meu pai era chato e a reforma da igreja me deixava muito contente. Mas depois
eu percebi que meu pai estava era certo. Pra que uma igreja que todo mundo vê,
mas ninguém senta? As pessoas que vão, dessas mais antigas, dos tempos do outro
padre, aquele que andava de bicicleta, deviam ter lugar suficiente, elas já são
anciãs. Mas foi o padre que teve a ideia. Pensando bem, eu até gosto de ver
missa em pé, lá no fundo...
Mas
de repente eu resolvi escrever essas coisas pra contar o que me aconteceu: foi
no dia em que eu descobri que tinha outro jeito de olhar pra igreja. Sim, de
frente não, como quando eu ia com a minha mãe; nem à noroeste, como eu via no
portão da minha casa que ficava perto. Acho que foi porque eu cresci e as distâncias
ficaram menores entre a minha casa e a igreja. Então eu descobri que dava pra
ver a igreja e suas duas enormes torres roxas pela parte de trás, num cantinho descoberto
lá no prédio da escola...
A
escola em que eu estudava era em frente a minha casa, perto também da igreja. Um
dia, crianças no pátio na hora do lanche, a professora de português tinha uma
carta pra me entregar! Sim, ela mandava cartas nossas para os alunos de uma
outra escola e eles escreviam de volta! Tempos em que receber cartas excitava como
curtida em Facebook da pessoa amada. Eu queria a minha! Será que tinha chegado?
Subi mais que depressa as escadas, quem sabe a encontrava antes de voltar à
sala. Ouvi uns burburinhos que vinham da sala dos professores e todo cheio da
timidez vermelha das minhas bochechas, engasguei umas palavras, perguntando da
carta, já chegou? Sim, chegou, lá na minha pasta, pega, ali, na outra sala... Ao
lado da sala dos professores havia um quartinho de bagunças, um almoxarifado,
só que menos formal, dava para entrar e sair, consultar materiais, armários
velhos. Foi ali, naquele quartinho, iluminado por grandes janelas engradeadas
que encontrei a pasta por sobre uma mesa, azul transparente, minha carta
guardada por dentro, por cima das outras – a professora decerto sabia que
aquele jogo de escrever demais me entusiasmava, mais que aos meus colegas de
classe... Meti a mão na pasta ansioso, mas não tanto a ponto de evitar subir os
olhos para a enorme janela que a mim se insinuava... E foi ali, diante da
enorme abertura de vidro que eu me detive, atônito, estático, irrequieto e de
olhos esbugalhados. A janela ficava de trás para as torres da igreja, que eram
no quarteirão seguinte. Dava pra ver direito o desenho retangular das duas
colunas roxas que se erguiam por sobre o solo do bairro. Era tão bonito ver a
paisagem daquele ângulo: um coqueiro à esquerda, a igreja ao centro, no plano
superior da tela, como se fosse uma pintura, e abaixo os telhados das casas das
pessoas, com cores diversas, coloridas de cor e de luz do sol, que além disso
fazia refletir o azul do céu bonito como só lá perto de casa tem...
Foi
então que, num desfocar de olhos, na retina, a repentina cena. Reparei na tela
que protege a janela, uma grade quadriculada que, pela parte de fora, envolve
toda a extensão da vidraçaria afixada. Por entre as grades, eu vi, como nunca
antes, a igreja, e suas torres enormes levantadas no horizonte das vistas. No
entregrades, apequenadas em meio a tetos e telhados, tortos, tenazes,
explodindo de cor - contraste com o roxo desbotado-, as duas torres. Se erguiam,
como que cambaleantes, sem base, e enfeiuravam o bairro. Perto, pareciam distantes,
como quando eu era criança...
Que
coisa feia pensar assim a igreja, deve ser até pecado! Imagina, igreja feia
nada, era o desbotar do tempo porque já fazia uns dez anos que era daquele
jeito. Mas no entorno, a profusão de cores me estagnava no quartinho, olhos
fixos na janela, de onde vinha a luz e a cor: do céu azul de luz do sol
amarelada, nuvens brancas prenunciando bailes ao resvalar da ventania, o
coqueiro verde, verde que só, do lado esquerdo da pintura. E eu já não era um
aluno curioso olhando pela janela, mas um apreciador de obras de arte, dessas
cuja desarmonia dos elementos, em diferentes perspectivas, revela coisas
escondidas de nós mesmos, dentro de nós mesmos.
E
de repente a igreja lá do bairro, eu vi pela parte de trás, da altura do
segundo andar, nem era tão alto, como as torres, mas eu vi. Lembrei, por algum
motivo, que aquelas torres nem precisavam ser tão altas, que era melhor
construir no chão, onde o povo senta, levanta, entra e sai da igreja. E as
idéias do padre já não eram tão naturais, e as coisas ao redor não me pareciam
prontas desde todos os tempos. E isso, jamais, era idéia do padre...
Foi
quando, mais que de repente que o primeiro de repente, me desperta a voz da
professora, e essa demora para pegar uma pasta, abre logo, sua carta está aí,
logo acima, o recreio já acabou, vamos pra sala... E num segundo, os seis
lances de escada eram um pueril escorregador desses que a gente desce quando é
criança e chega no chão com o coração explodindo de vontade de fazer tudo outra
vez.
Fui
pra casa umas poucas horas depois.
Ao
chegar, me detenho em frente o portão, levanto o pescoço, tiro os óculos, que é
pra ver melhor de longe, e o sol aparece iluminando ainda mais as torres da
igreja. Um sorriso movimenta os músculos da minha boca e irriga excitação por
entre a tubulação que leva oxigênio aos pulmões, para que o coração não pare de
bater. Ora, aquelas torres altas, e no alto nem tinham terminado, é porque era
pra gente terminar. Melhor, era pra gente saber que dá até pra derrubar e no
lugar fazer uma igreja maior onde o povo não precise ficar do lado de fora, em
pé, possa sentar nos bancos e conversar, desinteressadamente, sobre a reforma
da igreja, e aquele padre que andava de bicicleta, que saudade!
Porque, se tem uma coisa que eu descobri, nas
grudentas grades da janela, é que até quando a gente acha que a reforma acabou,
concretando frustrações, é possível ainda aparecer uma janela aberta, mesmo
entregrades, pra gente olhar tudo de novo, colorir em meio a toda luz, e
refazer, do chão, uma igreja para o povo...
E.S.C, março/13
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