Talvez o afeto ajude a
fixar reminiscências, embora vagas, carregadas da mais autêntica recordação. O
aconchego: assim, pai, irmão mais velho e irmão gêmeo se projetam em sua
inteira meninice, deitados por sobre as cobertas, na cama da minha mãe, a
cantarolar versos imemoriais. De certo meu pai terá sido minha mais longínqua
referência poética, no badalar da musicalidade de suas estrofes:
Eu dei um tiro
Por cima de outro tiro
nunca vi tiro dar
tiro,
nunca vi tiro tirar
Eu dei um pulo
Por cima da ligeireza
Pulei banco, pulei
mesa
Cadeira de balançar
Tradição oral jamais
escrita, projetando-se qual baú de velharias, nunca velhas. Meu pai, de fato,
possuía um baú inesgotável de divertidas rimas, cançõezinhas curtas de
inestimável valor emotivo. Pela literatura gravada em sua densa memória, deixou
um pouco de si em cada um de nós. Primeiro e contraditório grande herói.
Quinta me deito
Sexta me levanto
Sábado num trabalho
Que domingo é dia
santo.
Dessa quadra, penso no
ritmo do tempo, na passagem dos dias, evocadas como um monótono relógio que
prenuncia a mesmice do correr das horas. Aquela infância sem fim, de eternos
instantes, se deslumbrava da melodiosa poesia do tempo, a repetir-se com o
número de sílabas e ritmo contado. Versos a evocar a preguiça, essa nossa
desconhecida, exorcizada de nossos hábitos pela repetição contínuo do fluxo
laboral paterno: de segunda a sexta, de madrugada à tardinha, a ausência
sentida do progenitor se fazia espera, rompida no corre-corre concorrido ao
ponto de ônibus, quando, pelas seis horas da tarde, meu pai aparecia na
esquina, descendo do ônibus, em sua esquálida figura de homem trabalhador.
Desde cedo, a relação
com o trabalho se mostrou tensa entre nós. Éramos nada mais que filhos da
classe trabalhadora, batalhadora, honesta, buscando sobreviver no respeito
estrito à ordem das coisas, superando percalços pela crença firme na solidez da
honra de quem trabalha e confia em Deus.
Talvez o aconchego do
momento musical debaixo dos cobertores e as manhãs de sábado e domingo fossem
as maiores alegrias de meu pai. Em casa nos fins de semana, não aguentava um
segundo a mais de solidão: dada certa hora temprana da manhã, dirigia-se ao
quarto onde dormíamos eu, meus irmãos, e puxava um longo assunto, em forma de
verso, prosa ou canção, que nos despertava aos poucos, qual flautista mágico, a
hipnotizar inocentes crianças.
A recusa inicial em
renunciar ao sono ora se fazia colo, ora rancor de criança, mas que logo se
esfumaçava na mão carinhosa a acariciar nossos corpinhos fracos. Lembro-me,
ainda hoje, da sensação de completude que dava o sentir a mão do meu pai a
acariciar-me, enquanto desenrolava velhas recordações, comentava atuais
conjunturas, ou projetava-se como um pai presente no futuro dos seus pupilos.
Presente, passado e futuro se fundiam na mão carinhosa do meu pai e nas suas
breves e profundas canções de despertar.
Contrapunha-se ao
homem honesto e trabalhador que residia em minha casa os “desnaturados” e “preguiçosos”
tipos da vizinhança, a reunirem-se para doses sem fim de cachaça e todo tipo de
bebida no bar em frente: velho barreiro, conhaque, 51, vodka... Não à toa e a
custa de um leve riso interior cantávamos junto com meu pai:
Terça e quarta na
bebedeira
Quinta e sexta da
mesma maneira
Sábado, domingo,
segunda-feira
Versos catárticos,
pois confirmava em nós, pelo riso que provocava, a certeza de que não
pertencíamos ao grupo evocado, embora a primeira pessoa trouxesse para muito
perto de nós o drama cantado na toada. Um eterno retorno ao ponto de partida,
desprovido de sonho e de alegria: essa era a rotina de tantas famílias ao nosso
redor, cujos pais, desiludidos e desarmados diante do mistério da desigualdade,
desaguavam amarguras no copo de ou de cachaça ou outra bebida qualquer,
conquanto fosse quente o suficiente para purgar, no sonho, o que o cotidiano de
incertezas fazia arder.
E o que dizer da
capacidade narrativa ímpar do meu pai? Não havia histórias da Bahia que não
acontecessem diante de nós, com toda carga dramática cuidadosamente evocada,
como que milimétricamente racional e consciente. A emoção provocada, povoada de
personagens, fazia reter a profundidade do drama existencial a la Homero,
Cervantes, Shakespeare...
Nas tramas e
entrelaçadas manhas de canções e cantos, meu pai trabalhava. Ao contrário dos
úteis dias corridos, feitos de trabalho desprovido de sentido, nas manhãs de
sábados, domingos, feriados, ou nas noites de qualquer dia antes do sono, meu
pai criava mundos de sentidos infinitos e melodiosos, transmitia um legado
cultural enriquecido de experiência simbólica pessoal e, assim, fazia dos
filhos, aninhados ao seu redor em primordial e saudoso aconchego, seres
verdadeiramente humanos: imersos e impregnados na cultura, segunda natureza, a
projetar do contexto pobre e rude futuras memorações...
E.S.C., 2014
Cotidiano feito poesia. Coisa mais linda de se viver.
ResponderExcluirEncerrei o texto com lágrimas nos olhos.